Madame Butterfly é uma Ópera maravilhosa com uma estória triste, desapontadora e dolorosa. Bem mais humana do que pensamos se à analisamos mais profundamente.
Uma das “Óperas pequenas”, como eu as chamo. Não refiro-me à música e sim à toda uma atmosfera especial e “íntima” desprovida de qualquer “apoteose” que Puccini sabia dar perfeitamente aos seus melhores trabalhos: Pensem na chave perdida, na vela que se apaga no primeiro ato de “La Bohème” e depois o “Muff” que Musetta dá à Mimi para esquentar suas mãos. Objetos pequenos. Muito pequenos para o palco. Objetos pequenos requerem uma gesticulação menor no palco. Objetos que fazem-nos, não importa aonde estejamos sentados, nos inclinar um pouco para frente, dedicando ainda mais nossa atenção e concentração, entrando nesta “intimidade” em plena empatia, em pleno “rapport”.
Butterfly, originalmente uma estória de John Luther Long foi adaptada para o palco por David Belasco e teve sua premiére em New York em 1900. A produção “atravessou” o Atlantico para Londres, onde foi vista por Giacomo Puccini. Sua Ópera foi um fracasso em 1904 (estreiou no La Scala de Milão) mas logo em seguida foi revisada e reestreiou com grande sucesso. Esta é a versão que ouvimos até hoje, uma das Óperas mais frequentemente produzidas em todo o mundo.
A “linha” da estória é simples. Muito simples. Passada inteiramente numa casa em Nagasaki. O enredo poderia ser até ridículo (Girls gets boy, girl loses boy, girl commits Hara Kiri) nao fosse toda a emocionalidade ligada ao amor e valores e à caracterizacao dos personagens principais, nao só em termos musicais como também dramáticos.
UM CURTO RESUMO:
No primeiro ato conhecemos Capitão Pinkerton, um americano, e já sentimos que ele não é “flor que se cheire”. Sua “noiva”, Cho-Cho-San que tem sómente 15 anos, foi encontrada para ele por um agente de casamentos.
Ele compara-a à uma Borboleta (“Tenho que caçá-la mesmo que danifique suas asas”). O terreno está já preparado para a tragédia que seguirá. Butterfly não quer ver a realidade e está perdida de amor por Pinkerton. O consul americano aconselha Pinkerton a levar mais a sério seu casamento com Cho-Cho-San. Durante a cerimonia de casamento o tio de Butterfly aparece e a amaldiçoa. Ela assumiu a “religião americana” na casa da Missão, traíndo assim seu povo. Ela então, neste momento, “abandona” sua família, sua religião, suas crenças. Suzuki, sua empregada, prepara-a para a noite de núpcias. Pinkerton não consegue acreditar em sua sorte: este “brinquedo” pertence a ele.
No segundo ato 3 anos se passaram. Pinkerton que prometeu voltar, nunca o fez como Suzuki pensava. Butterfly continua enganando-se. O Consul, Sharpless, recebeu uma carta de Pinkerton e quer preparar Butterfly para o fato que ele vem ao Japão mas não por ela. Butterfly interrompe-o, impedindo-o de contar a verdade, dar a notícia que ela não quer ouvir. Como sempre ela nega a realidade. Ela recebe uma proposta de casamento, do rico Yamadori mas recusa-o justificando que seu casamento americano não é fácil de dissolver. Sharpless tenta convence-la de aceitar. Ela então lhe apresenta seu filho de tres anos, o filho de Pinkerton. Um canhão soa no porto anunciando a chegada do navio de Pinkerton. Butterfly decora toda a casa com flores.
No último ato Butterfly passou uma noite em claro e Pinkerton ainda não veio. Suzuki é surpreendida por Sharpless e Pinkerton. No jardim espera Kate, a esposa de Pinkerton. Eles vieram apanhar a criança para levá-lo para um futuro “seguro” na América. Butterfly se entera da verdade e manda todos embora. Ela quer entregar o menino pessoalmente a Pinkerton. Só. Ela separa-se da criança por alguns instantes e se apunhala com a adaga de seu pai, com a qual ele próprio fez um Hara Kiri.
UMA EXPERIENCIA PESSOAL:
Há muitos anos atrás tive uma linda oportunidade. Fui convidado ao Conservatório de música do Brooklyn para assistir uma versão amadora de “Butterfly”. Jamais esquecerei este espetáculo. Se consideramos Butterfly uma obra “íntima”, eles simplesmente captaram a essencia na raiz! Musicalmente nada de especial (até pelo contrário) mas que “staging”!
De pura sensibilidade e compreensão da obra. Depois deste dia sempre senti falta de tal “compreensão”. Do Met à Ópera de Viena.
Um exemplo. No segundo ato. Cho-Cho-San está sempre vestida “ocidentalmente”, pois assumiu uma vida ocidental assim como a religião de seu marido. Em toda e qualquer produção, o soprano está sempre muito bem vestido. Nesta apresentação Cho-Cho-San estava mal vestida, fora de moda, com um corte de cabelo feio... Sim, ela vivia no Japão em 1900, sua “idéia” da mulher ocidental e de sua “moda” era fruto de algumas fotos que tinha visto alguma vez em qualquer revista antiquada, velha... ou em qualquer album empoeirado. Este fato é ainda mais claro para o público, no terceiro ato, quando a comparamos à elegante Kate Pinkerton. Butterfly transforma-se em uma figura patética. E ainda mais patética durante sua cena de morte (musicalmente minha parte preferida desta Ópera) depois de ter colocado seu kimono. Ela tenta reunir dentro de si mais uma vez seu povo, suas crenças, seus costumes, sua religião, sua honra. Ela tenta voltar à suas raízes. O Kimono, a adaga de seu pai, o budismo... mas tem o cabelo ocidental. Feio, mal cortado (Ao contrário das grandes cantoras que aparecem no terceiro ato com um penteado complicado e trabalhoso). Ela simplesmente transformou-se, para mim, numa figura real, palpável naquele momento. De carne, sangue e osso.
De volta ao segundo ato, sua ária “Un bel dì vendremo” (quando ela fantasia para Suzuki a “volta” de Pinkerton “um belo dia”) teve uma interpretação, em termos de atuação, quase brechtiniana. Um dos poucos exemplos de “estória dentro da estória” no mundo da Ópera, “Un bel dì” dá chances de interpretação muito além das fronteiras da melomania e da preocupação com a técnica. Sonho. Fantasia. Teatro puro. Sensibilidade à flor-da-pele. Isto multiplicado por dois. Estória dentro da estória.
Lembro-me da jovem cantora que interpretou Cho-Cho-San. Também uma linda atriz. Nela via-se uma Butterfly que não era totalmente inocente – como muitas cantoras a interpretam. Não podemos esquecer que Cho-Cho-San tinha sido uma Geisha (um erro da “estória” original pois nesta tenra idade ela ainda nao poderia ter acabado seu “treinamento” como geisha). As vezes interpretações de Butterfly tendem à transformá-la numa “heroína” esquecendo-se de seus erros, seus demonios, suas dúvidas e de sua desolação.
A cena na qual ela reúne finalmente dentro de si as forças que lhe restam, sua família (a adaga do pai) e sua religião para morrer foi de uma poesia única. No seu “santuário” via-se também uma cruz, bandeirinhas com “Uncle Sam”, recortes de revista. Então, em questão de segundos, nos demos conta que esta Cho-Cho-San ainda era uma criança. Sim, envelhecida pelo sofrimento, apaixonada, mãe até mas ainda uma criança que desde seus 15 anos havia vivido só, sem ninguém para guiar seus passos, para ajudá-la a se desenvolver moral- e intelectualmente. Sua morte não foi transformada num ritual. Esta cena é descrita como um “Hara Kiri” mas este também é um erro (muitas vezes é repetido nos grandes palcos). O Hara Kiri era um ritual únicamente masculino. Cho-Cho-San tirou sua própria vida. Apesar de todo o lado simbólico e espiritual. Ela caiu na realidade e quiz parar de sofrer. Só isto.
Eu já vi tantas “Madame Butterfly” na minha vida que já perdi a conta – amo Puccini! Mas devo confessar que a primeira vez que “compreendi” Butterfly MESMO foi naquela noite de inverno Nova Yorkino no início dos anos 80... Lembro-me vívidamente da longa conversa e análise (nada mais nada menos do que uma boa “tertúlia”) que seguiu aquela inesquecível apresentação, até altas horas da madrugada num pequeno bar em Greenwich Village. Um dos sentimentos mais gratificantes para mim: Compreender. Pois só sentindo posso compreender.
Não guardei o programa, não sei o nome dos músicos, dos cantores, do diretor, nem mais a data do espetáculo. Nada. Só sei que estarão para sempre vivos na minha memória. Com muita gratidão.
Aqui Mirella Freni na "Morte de Butterfly", que como já disse, é musicalmente minha parte preferida desta Ópera (Suzuki é a maravilhosa Christa Ludwig e Pinkerton um jovem Plácido Domingo!)
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Para finalizar Victoria de Los Angeles. Linda musicalmente. Num raro Take de 1962 que há pouco encontrei!
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