quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011
"La Bayadère" revisitada: O Reino das Sombras...
Poucas coisas me deixam tão animado, cheio de energia e excitado como pesquisar, aprender…
„Vibro“ literalmente ao encontrar (ou neste atual caso „reencontro“) um tema ao qual queira me dedicar por um (bom) tempo. A “excitacão” de estar aprendendo, conhecendo, toma conta de mim… fico feliz. Lembro com saudades da época à partir dos meus 14, 15 anos de idade… quando o aprendizado era constante, 24 horas por dia, pois os livros, as peças, os filmes, os ballets, os quadros, os poemas, os pensamentos estavam todos ali esperando por serem descobertos. Com o passar do tempo a gente se torna mais seletivo muitas vezes por uma questão de “gosto”, interesses… Mas mesmo assim…
Nunca tive e nunca terei qualquer ambição didática com este Blog (apesar da postagem de hoje poder dar esta impressão): não estou aqui para ensinar nada a ninguém – senão este Blog não chamaria-se “Tertúlias”, nome que implica numa “troca” de opiniões e acima de tudo na aceitação de opiniões alheias, diferentes das suas. Me disseram que não sei aceitar opiniões diferentes das minhas… Discordo. Questionar opiniões e discutí-las não significa “não aceitá-las” porém “querer compreende-las melhor, sentí-las e até aprender com elas” mas para isto temos que chegar a um ponto de aprendizado e compreensão pessoal no qual estamos completamente livres dos nossos próprios egos, orgulhos e do lado "emocional"…
Estou aqui para dividir com todos coisas que me tocam, coisas das quais gosto, coisas que admiro e coisas que talvez até “abomine” e “convido” todos para deixar aqui seus relatos, discutí-los abertamente...
Infelizmente o tempo torna-se cada vez mais curto para todos e sinto demais a tendencia que muitos tem em “se resumir” num vídeo ou curto pensamento (já li coisas do tipo "estou com calor") que é colocado, sem qualquer outro comentário ou opinião adicional, em plataformas à la “Facebook”. Distancio-me cada vez mais deste tipo de comunicação monologar (e vezes monossílabica) e volto a escrever mais longamente aqui e, quem sabe, talvez um dia me vá até daqui e retorne realmente a escrever só para mim… Coisas d’alma… Não quero a restrição da superficialidade da “obrigação de ser rápido e curto” (“senão ninguém vai ler o que escrevi!”).
Se tudo na vida fosse assim para que existiria o verbo “dissertar”?
Limpando umas prateleiras em casa “caiu” literalmente nas minhas mãos um velho VHS – da montagem de 1992 de Nureyev para a Ópera de Paris de "La Bayadère". Como há anos não assistia nenhum VHS resolvi colocá-lo, mas principalmente (não posso mentir!) para testar se o aparelho ainda funcionava… A febre de “La Bayadère” transformou-se numa "mania", numa epidemia dentro das minhas “quatro paredes”. Há poucos dias comecei a tirar livros de estantes, a imprimir toda e qualquer informação sobre este Ballet (só o relato da Wikipedia tem 28 páginas), a rever outras versões que tinha, estudar um pouco a partitura e cheguei até a encomendar do Amazon algumas outras versões que não conheco. Fascinante como de um momento para o outro nossa mente encontra mais um ponto de “interesse”. Amo estes momentos, estas fases… Claro que descobri muitas coisas interessantes, que se adicionaram ao meu humilde conhecimento deste Ballet – este fato transformou esta postagem um longo relato…
Gosto de contar «estórias» :
Em 1839 uma companhia de autenticas bayadères indianas (e hindus) visitou Paris. Théophile Gautier escreveu inspiradas páginas descrevendo a principal dançarina Amani. Muito depois em 1855 Gautier soube da trágica morte da bailarina que se enforcou num acesso de depressão numa nublada Londres por estar com saudades de sua terra natal… Como homenagem à bayadère ele escreveu o libretto para o Ballet “Sacountala”. O Ballet foi montado em Paris pelo irmão de Marius Petipa, Lucien. Este é o trabalho que muitos consideram como a real inspiração para a “La Bayadère” de Marius Petipa…
Nas últimas semanas “redescobri” para minha extrema satisfação “La Bayadère”, Ballet com música de Ludwig Minkus (que apesar de ter passado 15 anos como compositor oficial do Ballet Imperial Russo, tendo composto “La Bayadère”, “Don Quixote” e “Le Corsaire” - pelos quais ele foi extremamente identificado com a “alma” do ballet russo - era um Vienense que não só nasceu como também morreu aqui).
A linha da estória é simples porém bem melodramática com todos os elementos “amados” pelas platéias de então (La Bayadère estreiou em 1877, no mesmo ano do original "O Lago dos Cisnes", não da versão de Petipa): lugares “exóticos” (India), espíritos (como em Giselle) capazes de coisas sobrenaturais, amor não realizado, intriga, morte, justiça/vingança (no Ballet época muito confundidas...)
A bailarina de templo (a bayadàre) Nikiya e o soldado Solor juram amor e eterna fidelidade. O sacerdote (o Alto Brahmin) está porém apaixonado por Nikiya. O Rajah Dugmanta seleciona Solor para casar com sua filha, Gamzatti, e pobre Nikiya sem desconfiar disso aceita dançar num “noivado”.
O Sacerdote ciumento quer que Solor seja morto e conta ao Rajah a verdade sobre o amor de Nikiya e Solor mas, “o tiro sai pela culatra” e o Rajah ordena a morte de Nikiya. Gamzatti que estava escutando a conversa dos dois ordena que Nikiya venha ao palácio. Quando esta porém descobre sobre o “noivado” de Gamzatti com Solor pega uma faca, numa reação não pensada, e tenta matar Gamzatti, sendo impedida pela Aya desta
Assim como seu pai Gamzatti decide que Nikiya vai morrer.
O segundo ato começa com celebração do noivado na qual Nikiya dança tristemente… quando porém recebe uma cesta de flores, pensa que esta vem de Solor e se alegra. Mal sabe que dentro dessa cesta encontra-se uma víbora, colocada ali por ordem do Rajah e de Ganzatti. Ela coloca a cesta tão próxima ao seu rosto que a cobra a ataca mordendo seu pescoço. O Sacerdote lhe oferece um antídoto mas Nikiya prefere a morte que encontra nos braços de Solor…
No terceiro ato Solor fuma opium e numa euforia de sonho-delírio (ou não?) tem a visão do “Reino das Sombras” (espíritos). Ali ele se reúne a Nikiya.
O quarto ato (ao qual nos referiremos mais tarde) se passa no templo no qual o casamento de Solor e Gamzatti acontecerá. O espírito de Nikiya está presente… Quando o Sacerdote une as mãos do casal em casamento os Deuses se vingam pelo assassinato de Nikiya e destruem não só o templo como também todos seus ocupantes.
FIM
Em algum momento da história, o quarto ato foi “perdido” e o final do Ballet passou a ser o final do III ato, ou seja no “sonho” do “Reino das Sombras” – o que tira muito da dramaticidade desta obra.
Alguns historiadores citaram as possíveis causas para esta drástica mudança: alguns acreditam que depois das enchentes de 1924 em Petrograd (St.Petersburg) a maioria dos cenários e guarda-roupa do IV ato, como encenado no Teatro Mariinsky, foi perdido. Outros dizem que numa Rússia « pós-revolução » não haveriam verbas suficientes para o suntuoso IV ato do Ballet. Uma outra explicação é a falta de técnica nesta fase (pois maquinarias estavam quebradas e não havia dinheiro para consertá-las) para produzir a destruição do templo… Uma última “explicação” sugere que o regime soviético da época não aprovava, por questão de princípios, uma apresentação teatral que incluísse temas como Deuses hindús destruíndo um templo.
Seja qual for a verdadeira razão, só em 1980 o mundo voltaria a ver um quarto ato e o ballet práticamente completamente restaurado…
Eu me lembro que em 1980 Natalia Makarova (acima) recuperou todo o “desaparecido” quarto ato tendo porém que mandar “reconstruir” muito da música pois a partitura se julgava perdida. Ironicamente esta partitura estava na íntegra na Rússia e só Nureyev em 1991 teve acesso a ela para sua versão para a Ópera de Paris em 1992 – apesar dele mesmo ter mantido o que chamou na época de “tradição russa” e ter encenado o Ballet SEM o quarto ato… sem sua “tragédia” final. A ironia é que esta chamada “tradição russa” foi imposta em épocas do comunismo – regime que Nureyev tanto abominava… Eu acho porém que a Nureyev talvez lhe faltaram «forças» - explico depois…
Apesar de « La Bayadére » sempre ter sido considerada um clássico na Russia o “Oeste” não conhecia este Ballet. A primeira apresentação do “Reino das Sombras” (que é na realidade a parte mais conhecida do Ballet e algumas vezes, cada vez mais raramente, encenada independente do Ballet) foi no Palais Garnier em Paris, em 1961. Dois anos mais tarde Nureyev remontou a cena para o Royal Ballet com Margot Fonteyn como Nikiya.
No Brasil muitos bailarinos e público, com exceção daqueles poucos privilegiadaos que tiveram a chance de assistir a montagem de Makarova no ABT, viram pela primeira vez «O Reino das Sombras» no cinema ! Sim, na cena de abertura do filme «The turning Point» (Momento de Decisão, 1977). (Correção do autor em 25.02.2011: Eugenia Feodorova havia montado o terceiro ato no Theatro Municipal com Berta Rosanova e Aldo Lotufo e 16 bailarinas no corpo de baile. Quem tiver a informação do ano desta montagem, por favor entre em contato comigo! Obrigado.)
Eu muito prezo várias partes da crítica que a inteligentíssima crítica de Dança Arlene Croce fez quando comentando a versão de Makarova para o American Ballet Theatre. Aqui um curto pedaço, repleto de percepção e sensibilidade:
“A coreografia, criada 17 anos antes do “definitivo” "Lago dos Cisnes”, é considerada como a maior expressão em grande escala do “sinfonismo” na dança. A matéria do “Reino das Sombras” não é realmente a Morte apesar de que todos, com exceção do herói, estão mortos. É felicidade encenada na eternidade. A sequencia de entrada com seus intermináveis “Arabesques” lentos cria a impressão de um grande «Crescendo» que parece aniquilar o tempo. Não há razão que possa impedir as bailarinas de continuar para sempre… Ballets passaram por gerações como lendas, adquiriram a pátina do ritualismo mas La Bayadère é um ritual real, um poema sobre a dança, a memória e o tempo. Cada dança parece adicionar algo à dança prévia, como um idioma sendo aprendido. O Ballet cresce rápidamente com esta constatação, que no início é sómente uma elocução primordial, e que na “Coda” explode com um explendor articulado” (Livre tradução minha)
Por causa do palco relativamente “pequeno” do Met (em relação ao do Mariinsky) Makarova foi forçada a reduzir o número de bailarinas no “Reino das Sombras” a 24 (originalmente eram 32 – e na “revival” de 1900 de Marius Petipa foram até 48!). O seu maior desafio foi porém o último “perdido” ato já que, como préviamente dito, pensava-se que a partitura original estava perdida. Natalia Makarova não tentou recriar o original de Petipas – apesar deste ter sido mudado infinitas vezes ao passar dos anos, até por Vaganova – e coreografou-o ela mesmo.
A première em 1980 foi triste: Makarova que também dançava o papel de Nikiya, machucou-se durante o primeiro ato e foi substituída por seu “second cast”, Marianna Tcherkassky. Solor foi bailado pelo explendido e incomparável Anthony Dowell e Cyntia Harvey deu vida à Gamzatti.
Makarova encenou «La Bayadère» para o Royal Ballet, para o Ballet do La Scala em Milano, para o Australian Ballet, para o Royal Swedish Ballet, para o Royal Dutch Ballet, para o Ballet do Teatro Colón em Buenos Aires e para o Ballet do Theatro Municipal do Rio de Janeiro com Cecília Kerche e Thiago Soares (informação da querida Eliana Caminada, um “dicionário” de Ballet que possuo como querida amiga!). Abaixo Baryshnikov como Solor.
A versão do “Reino das Sombras” que veremos abaixo é da versão de 1992 de Rudolph Nureyev: A administração da Ópera de Paris sabia que esta produção seria o último presente de Nureyev ao mundo, já que sua saúde estava deteriorando-se rápida- e progressivamente pelo seu estado avançado de HIV positivo.
Exatamente por isso, a administração cultural da Ópera deu-lhe uma enorme verba para esta produção com mais fundos vindos de várias doações privadas transformando a produção numa ainda mais suntuosa do que préviamente concebida. Que bonito. Chapeau! Abaixo Sylvie Guillem como Nikiya.
A produção foi um grande sucesso, aclamado pelo público e pela crítica. Apenas tres meses após a estréia Nureyev faleceu.
Aqui o tão comentado “Reino das Sombras”
Mais da próxima vez sobre "O Ídolo de Ouro" (ou como na versão de Makarova "O Ídolo de Bronze").
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