sexta-feira, 29 de abril de 2011

Carta de uma mulher desconhecida (1948)

Decidi recolocar aqui uma postagem de agosto de 2008... Ela é muito "querida" para mim... Talvez os atuais leitores das "Tertúlias" a compreendam melhor...
Ricardo


"Carta de uma mulher desconhecida" ("Brief einer Unbekannten"), "novella" escrita em 1922. Aqui mais uma vêz estamos confrontados com o maravilhoso estilo e tratamento psicológico que Stefan Zweig sempre deu aos seus personagens, suas narrações... porém com uma sutíl diferença: desta vêz o livro, por ser simplesmente do início ao fim uma carta, é escrito na primeira pessoa. As nuances da personalidade de Lisa (que é a escritora da carta e, por êste motivo, a óbvia narradora do livro) não são descritas. Elas são detectadas pelo leitor nas entrelinhas. O leitor de Zweig não pode deitar-se e relaxar enquanto lê este curto livro. Êle têm que "trabalhar", êle têm que manter-se atento, vigiando, mastigando, digerindo, interpretando tôdo e qualquer detalhe que lhe é "dado" sutílmente pelo autor. E Zweig nêste livro não dá detalhes demais... Ele mantém informações guardadas, êle as economiza muito e só as vai deixando sair de sua caixinha de surprêsas à medida que o livro e o relato se desenvolvem: de uma simples manifestação de amor à uma tragédia; de um caso de amor que se transforma quase num caso patológico que envolve várias pessoas, não só os "protagonistas" Lisa e Stefan.
E tudo isto num "timing" preciso... mas o leitor só se dá conta disto depois de analisar muitas vêzes êste livro... Na primeira vêz em que o le, o leitor está sob a “síndrome de Zweig” (como eu a descrevo); não consegue parar de lê-lo.

Zweig, gênio...
Eu muitas vezes penso na ousadia do “subtítulo” de sua biografia de Marie Antoinette: "Retrato de um caráter médio" (tradução livre minha do alemão). Mas aí está o "pointe": Zweig com todas suas interpretações psicológicas nos mostra que Antoinette não era má (mas também não era boa), não era linda (mas também não era feia), não era inteligentíssima (mas também não era burra), não era uma fantástica espôsa e mãe (mas também não era péssima)... um caráter médio... Pouco importa ao leitor se suas pesquisas históricas tenham sido perfeitas ou não (e não fôram); as nuances da personalidade desta mulher são o que importa (apesar dele desmentir completamente a “lenda” do “O povo não tem pão para comer” e "Porque não comem bolo?", provando que esta frase foi falada uns 200 anos antes por uma princesa de origem espanhola e não por Antoinette... ).
Em “Carta” êle nos dá de presente tôda sua sensibilidade encima de uma bandeja... Eu penso no quanto existia de Lisa e de Stefan dentro do próprio Zweig... Zweig e tôda a sua extrema sensibilidade, que por um lado é maravilhosa para nós leitores mas que o levou ao brutal pacto de morte/suicídio com sua espôsa em 1942 em Petrópolis (aqui seus dois lados; o sensível e o brutal...). Tudo causado pela extrema depressão pela extrema falta de esperanças, por causa do sistema Nazi na sua pátria, pela destruição da Europa, seu "lar"... êles dois e o mundo não viam um final para a Segunda guerra mundial... Não existia "futuro", não existiam mais perspectivas para êles no “exílio”. Esta constatação acabou com êle e sua esposa.
"Carta" foi filmado em 1948 (Letter from an unknown woman). Uma pequena obra-prima que até em círculos de cineastas já foi práticamente esquecida. Eu me alegro de poder colocar aqui algo sôbre êste filme inesquecível (do roteiro ao guarda-roupa, dos cenários à luz, da fotografia à direção e dos desempenhos à pesquisa de época). Um filme de extrema elegância visual, e de uma fotografia em prêto-e-branco como poucas foram feitas... Max Olphüs conseguiu criar em Hollywood um filme extremamente europeu. Usou tudo o que pode da técnica americana mas acentuou fortemente um ar todo europeu que é quase único nêste filme. Ele não vendeu-se a Hollywood, só usou e abusou descarademente da sua técnica da época para criar êste filme. Joan Fontaine, então já quase no final da sua áurea década de 40 ("Rebecca", "Suspicious" pelo qual recebeu o Oscar antes de sua irmã, "Jane Eyre" entre outros) ou seja, no auge de sua carreira, dá aqui talvez sua melhor interpretação no cinema como a frustrada Lisa Berndle, antes de cair numa série de papéis que a tornaram a “carinha” mais antipática das telas de Hollywood nos anos 50. Louis Jourdan, no seu segundo filme em Hollywood (sua estréia foi no “Caso Paradine” de Hitchcock ao lado de Alida Vali) e no apogeu de sua beleza, cria um Stefan Brand que nos choca... infelizmente seu "futuro" (que vemos rápidamente quando êle recebe a "carta") não lhe deu o que êle sonhava ou esperava, por sua própria culpa. Ele transformou-se numa sombra do que foi, numa caricatura de si mesmo... e Jourdan fica derepente feio e velho diante dos nossos olhos. Não mais o jovem gênio que interpretava Mozart maravilhosamente na sua juventude e por quem Lisa se apaixonou eterna- e abandonadamente... Sómente um homem frustrado, fútil, superficial e solitário.
Um detalhe interessante que adicionou muita força à dramaturgia do filme foi o fato de Stefan não ser, como no livro, um escritor porém um pianista. Estava Zweig querendo nos contar algo semi-biográfico???? Qual é a conecção entre Stefan Brand e Stefan Zweig?
As ruas de uma Viena no início do século XX são lindas, escuras cópias européias sem o clichée vienense de Hollywood. Olphüs não deixou-se levar pelo "glamour" de Hollywood, e nao quiz nem "embelezar" nem “americanizar” o decór. Sente-se no ar o cheiro de maçãs assadas no "Prater", cheira-se a poeira da têrça-feira (o dia para bater os tapêtes no pátio interior dos prédios burguêses), ouve-se suavemente temas musicais vienenses que não chegam nem a serem totalmente registrados ou a transformarem-se em clichées enquanto os dois jantam num "separée", o frio da noite reflete o frio dentro de uma Lisa que não é amada, no hospital do govêrno sente-se o cheiro de éter no ar... e a estação... a estação é o símbolo de tudo que muda (e às vezes parte para sempre) na vida de Lisa: a ida para Linz com a família, a despedida de Stefan, a despedida de seu filho...

Stefan nunca aprendeu a lembrar-se de Lisa, a menina pobre que morava no seu prédio e que já o amava profundamente. Ela só foi um objeto que usou. Quando ela volta de Linz já uma jovem e bonita dama êle tem seu primeiro caso de amor com ela sem lembrar-se que ela foi aquela menina descalça apaixonada por êle. Êle parte para a Itália, promete voltar em duas semanas mas não volta jamais para Lisa. Ela foi esquecida. Ela tem um filho seu, pobre, humilhada no hospital do govêrno mencionado acima e lhe dá seu nome de solteira: "Pai desconhecido".

14 anos depois, já muito bem casada, ele a encontra de nôvo na Ópera e sente-se atraído por ela... mas não se lembra da jovem moça com quem êle têve aquêle grande caso de amor. Esta parte do filme foi ligeiramente mudada... no filme ela vai a sua casa (já tinha despedido-se do seu filho na estação) e nota finalmente a superficialidade do caráter dele... ela, num momento em que êle não está na sala, sai e não volta jamais. Simplesmente sai de sua vida. Já no livro ela passa a noite com êle, apaixonada e no dia seguinte Stefan, que tinha-a confundido com uma "Cocotte" quer pagá-la pela noite... Uma cena muito, muito cruel que Lisa (Zweig) descreve na carta... no livro.

De qualquer forma já é tarde; o compartimento do trem no qual seu filho partiu de férias deveria ter estado fechado: cólera...
A criança pega a doenca e morre. Lisa também e morrendo, escreve a carta para Stefan e lhe conta toda sua estória. Ela, a mulher que o amou loucamente em três fases distintas da sua vida, a mulher de quem ele nunca se lembrou... a mulher desconhecida.
Quando êle acaba a carta, lê que a paciente morreu antes de terminar a carta...

Joan Fontaine (1917) assim com sua irma Olivia deHavilland (1916), a "Melanie" de GWT (ambas nascidas no Japão e as primeiras irmas na história do cinema que ganharam “Oscars”) e Louis Jourdan (1919) ainda vivem...

Oxalá êste filme venha a ser redescoberto. Uma jóia... um magnífico brilhante na carreira dos dois!!!! E na de Olphüs, junto ao seu brilhante “Lola Montez” com Martine Carol!

P.S. Gostaria ainda de deixar meus parabéns aqui à cidade de Petropólis pelo fato de terem aberto um Museu Stefan Zweig, coisa que até hoje aqui na Austria, seu país de nascimento, nunca foi feita... e acho que nem cogitada. Mesmo assim Stefan Zweig sempre será este maravilhoso escritor que encantará muitas e muitas gerações...

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P.S.2 Esta postagem foi sugerida pela minha amiga Maurette. Por este motivo é também dedicada à ela! Obrigado!

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